Arte Secular das Massas Doces, Grostoli e Cueca Virada na Tradição Ítalo-brasileira

A gastronomia do Sul do Brasil apresenta um rico mosaico de sabores e técnicas culinárias onde destacam-se o Grostoli e a Cueca Virada, doces que representam muito mais que simples receitas são expressões de identidade cultural e memoria coletiva. Estas iguarias, presentes há gerações nas mesas sulistas, transcenderam suas origens para tornarem-se genuínos símbolos da tradição ítalo-brasileira. Elaborados artesanalmente a partir de massas fritas e finalizados com açúcar ou mel, estes doces carregam em si a essência de um conhecimento transmitido por gerações, mantendo vivo um legado gastronômico que resistiu ao tempo e as transformações sociais.

A longevidade destas receitas através das décadas evidencia sua importância no tecido cultural da região. Mais que alimentos, o Grostoli e a Cueca Virada são repositórios de memoria, técnicas ancestrais e rituais comunitários que consolidaram sua presença no cotidiano das famílias do Sul do Brasil. 

Origens e Nomenclatura

Os termos “Grostoli” e “Cueca Virada” revelam uma fascinante diversidade linguística regional. O Grostoli, derivado do termo italiano “crostoli”, remete a característica crocante do doce após a fritura. Já a peculiar denominação “Cueca Virada” origina-se do formato resultante das dobras na massa, que lembra vagamente uma peça intima masculina virada ao avesso.

A nomenclatura destes doces varia consideravelmente no território sulista. No Rio Grande do Sul, encontramos termos como “crostoli”, “grostoli” e “cueca virada”. Em Santa Catarina, surgem variações como “filo” e “crostoli”, enquanto no Paraná são conhecidos também como “orelha-de-gato” ou “orelhinha”. Esta pluralidade terminológica reflete adaptações linguísticas e culturais dos dialetos italianos originais ao português brasileiro.

Na tradição gastronômica italiana, estes doces possuem correlatos evidentes. O Grostoli brasileiro relaciona-se diretamente com os “chiacchiere” da Lombardia, os “cenci” da Toscana e os “frappe” do Lazio. Já a Cueca Virada encontra similaridade com os “nastri” e “crostoli” do Norte da Itália. Embora mantenham conexões com suas raízes, as versões brasileiras desenvolveram características próprias, adaptando-se aos ingredientes e gostos locais.

O Grostoli: Características e Preparo

O Grostoli apresenta-se como uma massa fina, crocante e dourada, levemente adocicada, com formato retangular ou de fitas irregulares. Tradicionalmente, e elaborado com farinha de trigo refinada, ovos, açúcar, manteiga ou banha, um agente aromático (geralmente raspas de limão ou baunilha).

O preparo artesanal do Grostoli segue rituais precisos. Inicialmente, os ingredientes são misturados até formar uma massa homogênea, que deve descansar por aproximadamente 30 minutos. Este período e fundamental para que o glúten se desenvolva adequadamente, proporcionando elasticidade a massa. O processo de fermentação, quando utilizado, resulta em um Grostoli mais leve e com pequenas bolhas de ar.

A técnica de abertura da massa exige habilidade 

Tradicionalmente, utiliza-se o cilindro manual ou o “mattarello” (rolo de macarrão) para esticar a massa ate atingir espessura mínima, quase translucida. O corte, feito com faca ou carretilha, define o formato característico, muitas vezes com um pequeno talho central que cria o efeito de “no” apos a fritura.

O momento mais delicado e a fritura, realizada em gordura abundante a temperatura constante (aproximadamente 180 graus). A massa deve flutuar no óleo, sendo virada rapidamente para garantir douramento uniforme. O Grostoli ideal apresenta coloração dourada homogênea, textura crocante e interior levemente alveolado. Apos a fritura, e polvilhado com açúcar refinado ou de confeiteiro, podendo receber mel em algumas variações regionais.

A Cueca Virada: Características e Preparo

A Cueca Virada distingue-se pelo formato peculiar, resultante da técnica de dobra e um corte central na massa, que apos frita, assemelha-se a um laco ou gravata borboleta. Sua textura combina crocância externa com maciez interna, diferenciando-se do Grostoli pela maior espessura e consistência.

Os ingredientes fundamentais incluem farinha de trigo, ovos, açúcar, manteiga ou banha, fermento químico e aromatizantes como essência de baunilha ou raspas cítricas. Em algumas receitas tradicionais, adiciona-se nata ou creme de leite para maior riqueza. A proporção precisa destes componentes e determinante para o sucesso da receita, com especial atenção a quantidade de gordura, que influencia diretamente na textura final.

O processo tradicional inicia-se com a mistura dos ingredientes úmidos aos secos, trabalhando a massa ate que fique lisa e homogênea, porem sem excesso para não desenvolver demasiado glúten. Apos breve descanso, a massa e aberta ate atingir espessura media (maior que a do Grostoli). O corte em retângulos e seguido pelo gesto característico: um corte central e uma torção que cria o formato de “cueca virada”.

A técnica de dobra

Carrega significado cultural e prático – além de criar o formato distintivo, permite que a massa cozinhe uniformemente durante a fritura. Os retângulos cortados recebem um talho central, por onde uma das pontas e passada e puxada, criando o efeito de “virada”. A fritura deve ser realizada em temperatura ligeiramente inferior a do Grostoli (aproximadamente 170 graus), garantindo cozimento completo do interior mais espesso.

A finalização tradicional inclui cobertura generosa de açúcar refinado ou açúcar com canela. Em festividades especiais, pode receber mel de abelha levemente aquecido, que penetra parcialmente na massa criando uma textura única. Entre as regiões sulistas, observam-se variações sutis na espessura, tamanho e método de cobertura, refletindo preferencias locais.

Aspectos Sensoriais e Nutricionais

O perfil sensorial destes doces e marcante e multidimensional. O Grostoli apresenta textura extremamente crocante, que produz som característico ao ser mordido, contrastando com o toque aveludado do açúcar de confeiteiro. Seu sabor combina a doçura sutil com notas aromáticas dos ingredientes de perfume, como limão ou baunilha, criando uma experiencia gastronômica equilibrada.

A Cueca Virada oferece experiencia sensorial distinta a textura externa crocante da lugar a um interior mais macio e alveolado. Seu sabor tende a ser mais intenso e doce, especialmente nas versões finalizadas com mel, que acrescenta complexidade aromática e persistência gustativa.

Os aromas característicos derivam principalmente dos agentes aromáticos tradicionais (raspas cítricas, baunilha, canela) e do processo de fritura, que desenvolve compostos voláteis responsáveis pelo aroma inconfundível que preenche as cozinhas durante o preparo – elemento evocativo da memoria afetiva relatada por muitas famílias.

Do ponto de vista nutricional, são preparações energéticas, ricas em carboidratos e lipídios, tradicionalmente associadas a períodos festivos em que o consumo de alimentos calóricos era culturalmente aceito e até estimulado. Uma Porcão media (aproximadamente 100g) fornece energia substancial, predominantemente proveniente da farinha refinada e gorduras utilizadas na fritura.

A harmonização tradicional sugere acompanhamentos que equilibrem a doçura e textura. O café preto forte, sem açúcar, constitui par clássico, criando contraste sensorial que realça ambos. 

Variações Contemporâneas

Como todo elemento cultural vivo, o Grostoli e a Cueca Virada tem experimentado adaptações contemporâneas que dialogam com a tradição. Chefs especializados em gastronomia tem proposto releituras respeitosas, incorporando ingredientes regionais brasileiros como açúcar mascavo, melado de cana e farinhas alternativas, enquanto preservam técnicas e formatos tradicionais.

Para atender públicos com restrições alimentares, surgiram variações sem glúten utilizando misturas de farinhas alternativas (arroz, amido de milho, fécula de batata). Versões veganas substituem ovos por sementes de linhaça ou chia hidratadas e utilizam óleos vegetais em substituição a manteiga ou banha. Embora modifiquem aspectos da receita original, estas adaptações permitem maior inclusão e continuidade da tradição.

Inovações técnicas também ganham espaço. Chefs contemporâneos experimentam métodos como a desidratação da massa previamente a fritura, criando texturas ainda mais crocantes. Aromatizações não tradicionais com ervas, florais e especiarias brasileiras representam fusão cultural que expande a experiencia sensorial, mantendo respeito a essência do preparo.

Preservação do Patrimônio Culinário

A preservação deste patrimônio gastronômico mobiliza diversas iniciativas. Projetos de documentação como o “Cadernos de Receitas: Memorias da Cozinha Italiana no Sul do Brasil” registram meticulosamente receitas, técnicas e contextos culturais, salvaguardando conhecimentos tradicionalmente transmitidos oralmente.

Associações culturais como o Circulo Trentino e grupos ligados a cultura italiana promovem oficinas praticas onde mestres confeiteiros compartilham técnicas com novas gerações. Estas iniciativas frequentemente transcendem o aspecto técnico, recuperando narrativas, musicas e expressões dialetais associadas ao momento de produção dos doces.

Projetos educacionais em escolas de comunidades com forte herança cultural italiana incluem estes saberes culinários no currículo, reconhecendo-os como elementos fundamentais da identidade cultural local. Paralelamente, roteiros de turismo gastronômico temáticos valorizam produtores tradicionais e estimulam a continuidade destas praticas.

Depoimentos e Historias

“Minha avo sempre dizia que uma boa Cueca Virada precisava de ‘mãos abençoadas’ – aquelas que sabiam exatamente a força necessária para abrir a massa sem romper. Ela preparava para todas as ocasiões importantes da família, e o cheiro inconfundível na cozinha anunciava que algo especial estava acontecendo. Hoje, quando preparo para meus netos, sinto que continuo uma historia que começou muito antes de mim.” – Dona Inês Battistel, 78 anos, Carlos Barbosa (RS).

“O Grostoli conecta nossa família há quatro gerações. Tenho guardado o ‘mattarello’ que minha bisavó trouxe da Itália, usado exclusivamente para abrir a massa. Durante a pandemia, ensinei minha filha a preparar através de videochamadas – ela em Porto Alegre, eu em Flores da Cunha. Percebi então que não estávamos apenas fazendo um doce, mas mantendo vivo algo muito maior.” – Marina Falcade, 62 anos, Flores da Cunha (RS).

Particularmente significativas são as memorias associadas ao papel destes doces em momentos de transição cultural como relatos de famílias que, mesmo enfrentando dificuldades de adaptação em novo território, mantiveram a tradição de prepara-los como forma de preservar sua identidade cultural e criar senso de pertencimento.

Finalizando

O Grostoli e a Cueca Virada representam expressões gastronômicas constituem patrimônio cultural vivo que conecta gerações, preserva técnicas ancestrais e materializa a memoria coletiva. Através destes doces, comunidades no Sul do Brasil mantem viva uma tradição secular que resistiu a transformações sociais, adaptando-se sem perder sua essência.

A perpetuação destas culinárias dependera da preservação de seu significado cultural pelas novas gerações. O equilíbrio e renovação constitui desafio constante permitir adaptações que garantam relevância contemporânea sem descaracterizar elementos essenciais que definem sua autenticidade cultural.

Conhecer e experimentar estes doces transcende a experiência gastronômica representa oportunidade de conexão com uma rica herança cultural que moldou parte significativa da identidade sulista brasileira. Cada mordida em um Grostoli crocante ou em uma Cueca Virada e, portanto, um gesto de valorização de um patrimônio imaterial que merece ser conhecido, celebrado e preservado para as futuras gerações.

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